Por Davi Miranda.
A mulher já estava acordada há muito
quando me levantei.
Calcei o chinelo e me vesti de ilusões.
Ela coava o café, torrava os pães e
já passava das sete quando o leite ferveu.
O passarinho se espraiava na gaiola,
derrubando alpiste no chão.
Da porta pra lá as crianças corriam,
sem saber o porquê e sem lugar algum para ir.
A vida era muito melhor quando eu não sabia os porquês.
Beijei-as e saí.
Enquanto as senhoras voltavam da missa
eu chegava à feira.
Adoro fazer parte daquela
bagunça organizada e margeada por barracas.
Gosto de sorrir da alegria dos feirantes,
de imaginar o pra lá das saias e
também de pechinchar:
– mais uma laranja de quebra, seu moço!
Na esquina, parei no Alcir e,
ainda sozinho, pedi uma cerveja.
A turma foi chegando:
Bira. Jorginho. Peçanha.
Logo eram muitos.
Do outro lado da rua uma mulher gritou:
Ubiratan!
E lá se foi o Bira, contrariado.
Depois do meio dia o bar fervia de gente
– sinal de que era hora de ir almoçar.
Voltando, pelas velhas calçadas,
uma metade minha era alegria,
a outra, tristeza.
uma metade era lembrança e
a outra, esperança.
Alguns olhares eram pra fora,
outros pra dentro.
Depois da quinta cerveja
é um tal de se pensar na vida…
As sacolas pesavam e
me marcaram as mãos.
Cheguei manso e a mulher não abriu a boca.
Mas com aquele seu olhar
me espetou um monte de verdades.
Minha fome era tanta que a barriga trovejava.
Prato e meio depois e eu já estava
na varanda, ouvindo o radinho,
descascando laranjas enquanto
as crianças corriam.
Cochilei.
Não tardou para que eu me levantasse.
Fui ao quarto, vesti listrado,
beijei a patroa e saí.
Caminhei por quinze minutos
até a estação de trem.
Meia hora depois o danado chegou.
O vagão, quase vazio,
logo perdeu a timidez.
A cada estação entravam mais pessoas,
e ambulantes,
e mais pessoas e ambulantes.
As vozes se misturavam e
eram cada vez mais altas.
A certa altura eram uma só,
cantando ou gritando
– e também cantavam gritando.
Quando dei por mim
o trem estava lotado, tomado,
e quase todos também vestiam listrado.
Senti-me em casa.
Chegando à estação, desci com a massa.
Os passos se arrastavam,
os olhares se cruzavam
e procuravam cumplicidade.
Os fogos que pocavam nos céus
formavam breves nuvens brancas,
trazendo um perfume de pólvora.
Sim, em dia de jogos pólvora é perfume.
Na fila por ingressos o clima mudou:
ali era cada um por si e defendendo o seu.
O tempo ia ligeiro,
a bagunça era lenta,
e muitas pessoas duvidavam de que,
lá no final,
sob tantas pessoas,
havia mesmo guichês,
tamanha era a multidão à frente.
Com o ingresso na mão,
já na rampa principal
o coração se acelerou:
quanto mais subíamos
mais gritávamos,
e mais cantávamos,
e o mundo todo vestia listrado.
Respirei fundo e entrei.
Sair do túnel de acesso
e vislumbrar o campo,
as torcidas,
e toda a festa de um estádio lotado
certamente é um dos momentos
mais singulares na vida de uma pessoa.
É uma clara metáfora da vida,
um autêntico renascimento
para um outro mundo que se descortina.
Eu não mais pensava por mim,
fazia parte de algo muito maior:
cantava o que eles cantavam,
gritava o que eles gritavam,
pulava quando eles pulavam.
Todos dividiam o mesmo semblante.
E apesar de estar ali, junto àqueles ritos,
eu me sentia cada vez mais livre.
O juiz apitou e o mundo parou de girar.
Ali, naquele momento,
não importava a minha origem
ou quem eu era.
Fiz três sinais da cruz,
deixei o jogo me levar e
por noventa minutos tudo o mais deixou de existir.
São como Deuses da tormenta, perdemos os sentidos, ficamos quase irracionais.
O fascínio de quem torce é a tradução da força que motiva o jogador em campo.
Os seguidores de um time não se importam com o barulho, pois sem cantoria, o futebol não seria nada. Futebol se trata de paixão. Sem paixão, o futebol está morto. Sem os torcedores, o futebol seria apenas 22 homens correndo atrás de uma bola.
Em 2014, a torcida do Paok foi a responsável por colocar seu time na decisão da Copa da Grécia, tornando a vida do rival um inferno. O quanto significa todo aquele movimento dos fiéis ao Corinthians? Sócrates, um louco, disse que queria morrer domingo, com seu time campeão. Assim se fez.
Nós revivemos a grandeza de uma história em todos os jogos. Quem não sente todo o corpo arrepiar com esse grito?
“Feliz é aquele que torce pelo seu clube por AMOR e não pelo número de títulos conquistados” e se o time está em crise, logo a dor passa. Basta um jogo.
É a hora de não medir esforços. Sem respeito ou caô.
Onde estiver, estarei. Ao seu lado, até o fim.
Parabéns por transmitir isso tão bem!
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